A construção de itens para instrumentos de autorrelato desempenha um papel crucial na pesquisa psicométrica. Afinal, é por meio desses itens que os participantes expressam suas experiências, atitudes e percepções. Por isso, neste post, você vai descobrir os principais cuidados que deve adotar ao elaborar itens para instrumentos de autorrelato.
Definição clara e precisa do construto
Antes de mais nada, você deve definir de forma clara e precisa o construto que almeja mensurar por meio de seu instrumento. Isso inclui ter em mente a teoria de base do instrumento e a literatura relacionada a testes semelhantes.
Por exemplo, suponha que você almeje construir um instrumento que avalie traços de personalidade. Desse modo, será importante apresentar uma definição de personalidade que seja clara e consistente com sua teoria de referência. Se a sua teoria de base é cognitivista, não faria sentido, por exemplo, incluir em sua definição mecanismos de defesa, que são consistentes com teorias psicodinâmicas.
Além disso, a definição deverá ser precisa. Em outras palavras, ela deverá delimitar o que o construto abrange e o que está fora dele. Por exemplo, se você quer investigar satisfação no trabalho, precisa indicar o escopo do construto e em que medida ele difere de construtos conceitualmente próximos a ele, tais como bem-estar no trabalho e felicidade no trabalho.
Em seguida, abordaremos dois níveis de definição do construto, a saber, a definição constitutiva e a definição operacional.
O que são definição constitutiva e definição operacional?
A definição constitutiva se refere à descrição conceitual ou teórica de um construto psicológico. Por exemplo, suponha que pesquisadores definam conceitualmente a sociossexualidade como “a disposição das pessoas em se engajarem em sexo casual“.
No entanto, o termo sexo casual pode ser interpretado de formas distintas, tais como relação sexual “que dura apenas uma noite (i.e., não ocorre duas vezes com a mesma pessoa)”, “com alguém que acabou de conhecer (i.e., excluiria amigos e parceiros anteriores)” ou “quando o motivo não está relacionado ao amor romântico, à procriação ou ao compromisso (i.e., poderia incluir amigos)”.
Uma possível solução, neste caso, seria incluir uma definição abrangente de sociossexualidade como “a disposição das pessoas em se engajarem em sexo sem compromisso” (Souza, 2019).
Por outro lado, a definição operacional se refere aos procedimentos para observar e mensurar uma variável. Em outras palavras, a definição operacional diz respeito ao modo como traduziremos o traço latente em comportamentos.
Por exemplo, a sociossexualidade possui os domínios comportamental, atitudinal e do desejo. No dominío comportamental, a sociossexualidade diz respeito à frequência de relações sexuais sem compromisso em um dado período.
A partir dessa definição operacional, podemos construir itens de frequência, tal como o item “Até onde você lembra, em sua vida, com quantas pessoas você fez sexo apenas uma vez?”
Em síntese, a definição constitutiva discorre sobre o que é o construto, enquanto a definição operacional discorre sobre suas manifestações observáveis. No caso de instrumentos de autorrelato, suas manifestações observáveis são respostas (de frequência, de concordância, de importância, de interesse etc.) aos itens do instrumento.
Ambas as definições são essenciais, pois elas nortearão a construção dos itens que irão compor o instrumento de autorrelato.
Veja também: Adaptação transcultural de medidas de autorrelato
Melhores práticas para construção de itens para medidas de autorrelato
Em um primeiro momento, a construção de itens pode parecer uma tarefa simples: basta perguntar aos respondentes aquilo que você quer saber. No entanto, essa tarefa requer alguns cuidados, pois itens construídos de forma inadequada geram dúvidas, respostas ambíguas ou mesmo pouco informativas.
Em seguida, apresentaremos uma lista não exaustiva de dicas de melhores práticas para a construção de itens para medidas de autorrelato. Contudo, note que essa lista não aborda dicas para a construção de itens cognitivos, como é o caso de testes de memória e de inteligência.
Construção de itens claros
Primeiramente, os itens devem ter linguagem adequada à população-alvo. Desse modo, é importante que os itens sejam redigidos de tal forma que o público com a menor escolaridade seja capaz de compreendê-los.
O item “Minhas incumbências laborais são sempre finalizadas pontualmente” não é claro, pois usa palavras pouco usadas no cotidiano brasileiro. Há uma maneira muito mais simples de expressar a mesma ideia: “Eu costumo terminar minhas tarefas no prazo”.
Outra dica importante é evitar gírias e regionalismos. Por exemplo, o termo em negrito no item “Eu mando bem quando trabalho com os outros” usa uma gíria que pode não ser compreendida por todos os respondentes. Além disso, o item transmite pouca seriedade, o que compromete sua validade de face. Uma redação mais adequada seria “Eu consigo trabalhar bem em equipe”.
Um fator que dificulta a compreensão é o uso de frases negativamente escritas. Por exemplo, respondentes podem ter dificuldades em entender o item “Não costumo fazer coisas que considero erradas”, devido ao uso dos termos “não” e “erradas”. Uma maneira de solucionar esse problema é reescrevê-lo de forma positiva, isto é, “Costumo fazer coisas que considero certas”.
Note, contudo, que existe uma diferença entre itens negativamente escritos (e.g., “Não me sinto confortável falando em público”) e itens negativamente orientados (e.g., “Sinto-me desconfortável falando em público”). Alguns autores (e.g., Bandalos, 2018) recomendam o uso balanceado de itens positiva e negativamente orientados, mas desencorajam o uso de itens negativamente escritos.
Construção de itens informativos
As dicas a seguir são particularmente relevantes a fim de construir itens informativos.
Itens devem conter apenas uma sentença. Por exemplo, o item “Sinto-me confortável liderando reuniões e delegando tarefas” viola essa regra. Como esse item deveria ser respondido por alguém que se sente confortável liderando reuniões ou delegando tarefas, mas não com ambos?
Se ambos os tópicos são relevantes, a melhor solução é dividir o item em dois. Por exemplo, podemos ter os itens “Sinto-me confortável liderando reuniões” e “Tenho facilidade em delegar tarefas” onde, inclusive, modificamos o início da frase do segundo item para aumentar a variabilidade na redação do instrumento.
Além disso, evite itens prováveis de serem endossados pela maioria dos respondentes (ou por nenhum deles). Por exemplo, você está avaliando atitudes em relação às drogas em uma escala de concordância. Considere o item “O uso de maconha deveria ser punido com a morte”.
Provavelmente, a maioria dos respondentes discordaria desse item, mesmo aqueles com atitudes mais negativas em relação às drogas. Desse modo, tal item não deve discriminar bem respondentes com diferentes atitudes em relação às drogas.
Por fim, evite o uso de universais, como “todos”, “sempre”, “nenhum” e “nunca”, pois eles incentivam os respondentes a pensarem em exceções à regra. Por exemplo, o item “Eu sempre concluo minhas tarefas no prazo” tem menor probabilidade de ter respostas “Concordo totalmente”, pois os respondentes se lembrarão de uma ocasião que invalida essa afirmação universal.
Construção de itens não enviesados
Neste post, o termo enviesados se refere a situações em que a redação do item pode levar a uma tendência a uma dada resposta. Além das dicas anteriores, que também contribuem para evitar itens não enviesados, forneceremos mais algumas a seguir.
Primeiramente, mantenha a neutralidade na redação dos itens. Em outras palavras, evite itens parciais e sugestivos de uma resposta normativa. Por exemplo, o item “Pessoas de sucesso cumprem todos os prazos, e eu faço o mesmo” presume que cumprir prazos define sucesso, o que pode induzir a uma resposta positiva.
Eventualmente, fornecer exemplos concretos pode ser relevante para clarificar o contexto. No entanto, tome cuidado para que os exemplos não sejam limitantes ou enviesados. Por exemplo, o item “Eu gosto de desafios, como resolver fórmulas matemáticas complicadas” pode restringir a resposta de quem gosta de desafios, mas que não tem afinidade com matemática.
Uma redação alternativa seria “Eu me sinto motivado ao lidar com desafios, como aprender algo novo”, pois esse item não restringe o domínio de conhecimento do desafio.
Por fim, leve em consideração diferenças culturais na população-alvo, evitando formular itens que sejam insensíveis a determinadas culturas. Por exemplo, o item “Eu gosto de passar o Natal com minha família” ignora que nem todos comemoram o Natal ou têm as mesmas tradições religiosas. Uma alternativa seria “Eu gosto de celebrar ocasiões especiais ao lado de pessoas importantes para mim”.
Avaliação de juízes e testes piloto
Anteriormente, apresentamos uma série de dicas para a construção de itens. Uma vez construídos os itens, você precisa avaliá-los.
Desse modo, antes de usar os itens em sua pesquisa principal, envie-os para juízes especialistas avaliá-los quanto à clareza, à pertinência teórica e à relevância prática. Recomenda-se que entre três e cinco juízes avaliem o instrumento.
Além disso, conduza testes piloto com um grupo menor de participantes oriundos de sua população-alvo de interesse. Nessa etapa, o objetivo não é testar suas hipóteses de pesquisa, mas sim verificar se os itens, as instruções e a escala de resposta estão compreensíveis para o público-alvo.
Em síntese, a avaliação de juízes e testes piloto são essenciais para avaliar a qualidade dos itens e do instrumento em construção. Essas etapas podem ser conduzidas iterativamente, a fim de refinar a qualidade do instrumento a ser utilizado em pesquisas subsequentes.
Conclusão
Neste post, diferenciamos definição constitutiva de definição operacional, apontando que ambas as definições são essenciais para a etapa subsequente de construção de itens. Em seguida, apresentamos uma série de dicas para redigir itens claros, informativos e não enviesados. Por fim, ressaltamos a importância da avaliação de juízes e dos testes piloto no processo de refinamento da qualidade do instrumento sob construção.
Lembre-se sempre de que a qualidade dos itens é o alicerce dos instrumentos de autorrelato, e seguir as melhores práticas aqui apresentadas pode ser fundamental para o sucesso do seu novo instrumento.
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Referências
Bandalos, D. L. (2018). Measurement theory and applications for the social sciences. The Guilford Press.
Pacico, J. C. (2015) Como é feito um teste? Produção de itens. In C. S. Hutz, D. R. Bandeira, & C. M. Trentini (Orgs.), Psicometria (pp. 55–70). Artmed.
Souza, M. L. R. S. d. (2019). Diferenças individuais na sociossexualidade e função sexual de homens de diferentes orientações sexuais [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. Repositório Institucional da UnB. http://icts.unb.br/jspui/handle/10482/37263
Como citar este post
Lima, M. (2024, 24 de dezembro). Construção de itens para instrumentos de autorrelato. Blog Psicometria Online. https://www.blog.psicometriaonline.com.br/construcao-de-itens-para-instrumentos-de-autorrelato/